sábado, 4 de outubro de 2008

Mil e uma, mas, na verdade, nenhuma!

Pessoa: Coisa que acaba.
Troço que tem fim.
Sujeito. Que não dura, que se extingue.
Míngua. Negócio finito, que finda.
Festa que termina. Coisa que passa, se apaga, fina.
Pessoa. Troço que definha.
Que será cinzas. Que o chão devora.
Fogo que o vento assopra. Bolha que estoura.
Sujeito. Líquido que evapora.
Lixo que se joga fora.
Coisa que não sobra, soçobra, vai embora. Que nada fixa.
A foto amarela; o filme queima, embolora; a memória falha; o papel se rasga, se perde, não se repete.
Pessoa. Pedaço de perda.
Coisa que cessa, fenece, apodrece.
Fome que se sacia. Negócio que some, que se consome.
Sujeito. Água que o sol seca, que a terra bebe.
Algo que morre, falece, desaparece.
Cara, bicho, objeto.
Nome que se esquece.


(Arnaldo Antunes)


Atos e papos, laços e abraços. Nem um vintém, elogio, apreço. The same path always, no time for risks. Mas uma vida não determina uma reputação. Fatos e boatos. Antes, ninguém. Agora, qualquer uma -- literalmente! De que adianta acertar? O erro sobrepõe a boa conduta. Aliás, que é boa conduta, afinal?

Algo determinado pela sociedade, que deve ser seguido fielmente por quem deseja ser visto com bons olhos, sem bem aceito. Livre-arbítrio é balela, mas virou clichê. Parafraseando Cecília, a liberdade é um sonho que o humano alimenta, mas que não há ninguém que explique ou não entenda. Então não sou humana, sou bicho. Irracional, pois não entendo. "Errar é humano": outro clichê. Mas por quê? Clichê, segundo o Aurélio, é uma imagem visual muito comum. Comum por ser verdade. Mas o erro não é tido como natural. Ou é?

Para quê minha boa conduta? Para alguém. Quem? Eu. Continuo uma qualquer; ou mais uma. O consolo é a certeza de que amanhã serei nada de novo. Sujeito finito, que finda. Porque sou ninguém que, quando alguém, um nome que se esquece.

A bolha acaba de estourar.

LC.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O fato de negar o pensamento já é pensar

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica tem naquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem?
Nem saber o que não sabem?

'Constituição íntima das cousas'...
'Sentido íntimo do universo'...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos
lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentando, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende que fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si-próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda hora.

(Alberto Caeiro, em O Guardador de Rebanhos)



Para mim isso chama-se sabedoria do equilíbrio.

LC.