segunda-feira, 10 de novembro de 2008

As flores não brotam do concreto

Uma vela acendeu-se, a luz propagou-se, os rostos iluminaram-se, assim como o ambiente. Faces pálidas, magras, com olhos inexpressivos, olhares distantes, temerosos. Paredes de pedra cercavam aquelas figuras que pareciam carregar fardos nos ombros já cansados, doridos; o espaço abafado sufocava os desejos e semeava a dúvida do que viria no minuto seguinte. As bocas confundiam gostos azedos e amargos; exprimiam um sorriso amarelo - talvez nem isso.

- Tradição, honra, disciplina, excelência - bradou a voz à frente do púlpito desbotado.


E assim seria dali por diante.

Todos os dias aqueles mesmos olhos inexpressivos de outrora multiplicavam-se para verem homens de ternos engomados falarem do mundo, do ontem, do verso...Homens sábios, experientes, luzes do saber. Luzes estas que iluminariam a escuridão das mentes jovens e vazias; que forneceria o brilho necessário para as estrelas do amanhã ascenderem.


"Tradição". De fato o conservadorismo ali existente sustentava o brado do momento primeiro. Tudo mecânico e previsível: repetição, memorização, fixação. O autoritarismo dos homens impõe não respeito, mas tensão, a qual impede qualquer tipo de questionamento, e garante disciplina e excelência.


Erva-daninha. O jardineiro chega para salvar as árvores, cuidar das rosas. Agora sim os olhos brilham, os corações disparam ao encherem-se de esperança: a esperança de sonhar, que chega através da poesia com ou sem rima, com ou sem métrica. A poesia exala um perfume de fragrância ímpar criada ao acaso, sem fórmula. Seu cheiro encanta, inebria, entontece. O jardineiro tem a função de assegurar a beleza e a essência do jardim. Para isso é preciso água, ar, sol, adubo.


Embora as flores necessitem dos cuidados do jardineiro, a autonomia delas faz parte do cultivo. E é o que difere simples homens de uma pessoa da terra: a humildade e sabedoria de entender que é apenas mais uma ferramenta usada pelo botão para produzir seu perfume, moldar sua forma, construir sua vida, determinar o porquê de sua existência.


Desajeitados, os homens arrancarão as rosas já desabrochadas do jardim cultivado pela pessoa da terra. Os espinhos fincarão em seus dedos, deixando cicatrizes após derramar o sangue tão vermelho quanto as pétalas da flor idealizada.


Enfurecidos, os homens dirão que a culpa é do jardineiro. Insistirão com a idéia de que são mais importantes que água, ar, sol, adubo. Persistirão com a vontade de alimentar a erva-daninha. A peste espalhar-se-á.


Medo.

De não ver flores; de não inalar o perfume das rosas; de não enaltecer a beleza do jardim.

Medo nos olhos. Naqueles mesmos olhos inexpressivos de outrora.

Medo.

Medo que ofusca o brilho e apaga a estrela.

Medo!


Os sussurros do jardineiro perdem-se com o vento da noite banhada por um luar sinistro, revelador de miragens.


A peste espalhar-se-á. Algumas rosas murcharão; flores morrerão.


Nem mesmo a mais bela e cheirosa resistirá. Os raios de sol denunciarão os restos caídos na terra. As plantas que resistirem não irão mais se desenvolver; os homens serão água, ar, sol, adubo.


Os mesmos olhos inexpressivos de outrora, os quais principiaram o brilho da estrela do amanhã, olharão para a terra e só enxergarão asfalto. Nada mais.


É que as flores não brotam do concreto.
LC.